13.6.08

O CIPÓ DA ALMA AMAZÔNICA

Foto: Luis Eduardo Pomar

Moisés Diniz (Deputado
estadual/PC do B - Acre)

Ayahuasca é um termo de origem quéchua, que significa "vinho das
almas" ou "cipó dos mortos", designa o chá feito pelo cozimento de
duas plantas originárias da floresta amazônica: o cipó jagube ou
mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da rainha ou chacrona
(Psychotria Viridis). Aya quer dizer "pessoa morta, alma, espírito"
e waska significa "corda, cipó ou vinho". Assim a tradução, para o
português, seria algo como "corda dos mortos" ou "vinho dos mortos".
A ayahuasca serviu como base para o estabelecimento de diferentes
tradições espirituais por comunidades indígenas nos países amazônicos
desde tempos imemoriais. Os povos indígenas utilizaram a ayahuasca
como um elo imaterial com o divino que estava entre as árvores, os
lagos silenciosos, os igarapés. É que, para eles, a natureza possuía
alma e vontade própria. Povos indígenas do Brasil, Peru, Bolívia,
Colômbia e Equador, há quatro mil anos, utilizam a ayahuasca em
seus rituais sagrados, como o padre usa o vinho sacramental na Eucaristia
e os indígenas bebem o peyote nas cerimônias sincréticas da Igreja
Nativa Americana. O uso ritualístico da ayahuasca é bem mais antigo
que o consumo do saquê ou Ki, bebida sagrada do Xintoísmo, usada
a partir de 300 a.C, feito do arroz e fermentado pela saliva feminina,
sendo cuspida pelas jovens virgens em tachos. A mesma prática é realizada
pelas índias da Amazônia, quando produzem a caiçuma da mandioca,
bebida ritualística indígena fundamental na dança do mariri e no 'contato'
com os deuses da floresta assombrosa. As origens do uso da ayahuasca
nos países amazônicos remontam à Pré-história. Há evidências arqueológicas
através de potes e desenhos que nos levam a afirmar que o uso da ayahuasca
ocorra desde 2.000a.C. Somente os 'intelectuais de água salgada', que lêem
um tomo filosófico à tarde, bebem 'whisky' à noite e pegam sol pela manhã,
para levantar argumentações contra o uso espiritual da ayahuasca.
Não conhecem a força e a beleza da espiritualidade amazônica e indígena.
A utilização da ayahuasca pelo homem branco é uma acolhida da
espiritualidade das florestas tropicais, um banho de rio milenar e
sentimental do tempo em que os povos amazônicos viviam em
fraternidade econômica e religiosa. Os ataques ao uso ritualístico- religioso
da ayahuasca, como bebida sacramental, nos autoriza a afirmar que podem
estar nascendo interesses menos inocentes e mais poderosos do que uma simples
preocupação acadêmica com a utilização de substâncias psicoativas.
Nunca é bom esquecer que a ayahuasca é uma substância natural
exclusiva das florestas tropicais dos países amazônicos e pode
alimentar interesses econômicos relacionados a patentes e elevar a
cobiça sobre a nossa inestimável biodiversidade. A ayahuasca é uma
combinação química simples e ao mesmo tempo complexa, que envolve
um cipó e um arbusto endêmicos do imenso continente amazônico.
Simples porque a sua primitiva química material da floresta é realizada
por homens comuns, do pajé ao ayahuasqueiro dos templos amazônicos.
Complexa porque envolve a elevação de indicadores psico-sociais de
qualidade de vida e ajuda a atingir estados ampliados de consciência
dos usuários. Isso por si só já alça a ayahuasca a um patamar superior
no plano do controle científico dessas duas ervas milenares.
Assim, a ayahuasca ganha contornos políticos por envolver recursos
florísticos de inestimável valor psico-social e espiritual. Os seus
usuários consideram o "vinho das almas" como um instrumento
físico-espiritual que favorece a limpeza interior, a introspecção, o
autoconhecimento e a meditação. Utilizar ayahuasca aqui na Amazônia
é beber do próprio poço de nossa ancestralidade e da magia que representa
a nossa milenar resistência. Aqui na floresta, protegidos pelos entes fortes
de nossa religião animista e natural, nossos ancestrais não precisaram
"miscigenar" sua fé. Não foi necessário fazer como os negros escravos que
deram nomes de santos católicos aos seus deuses africanos. Nossos ancestrais
indígenas não precisaram batizar Iemanjá de Nossa Senhora ou Oxossi
de São Sebastião para se protegerem da fé unilateral do dono da terra.
É que entre nós a terra era de todos e o único dono era o senhor da
chuva, do orvalho e do sol. A beleza coletiva dos recursos naturais
era compartilhada por toda a aldeia, do curumim ao sábio ancião.
A ayahuasca era a essência espiritual dessa convivência material
fraterna e universal entre as árvores carinhosas, os riachos irmãos,
os pássaros cantores, os peixes, as larvas, os insetos, as flores. A
Ayahuasca ancestral era o elo entre a terra e o espírito.
Se não fosse uma erva espiritual e mágica, trazida pelas mãos
milenares dos povos indígenas amazônicos, ela não teria resistido ao
tempo. Por isso é natural que a ayahuasca atraia cada vez mais o
homem branco, esmagado pelo destrutivo modo de vida urbano, elitista,
ocidental, capitalista. A ayahuasca não é um chá que se consome como se
bebe um líquido ácido qualquer. O seu uso é espiritual e envolve aqueles
que o utilizam na mais límpida tradição de amar o próximo e reencontrar
os valores que perdemos na caminhada do planeta que se dividiu
em castas, cores, fronteiras e etnias. Não entrarei no debate acadêmico
sobre o uso de substâncias psicoativas por parte das religiões milenares,
das eras pré-colombianas aos templos dos tempos atuais. Não tenho
competência para debater os pontos de vista da medicina,
da psicologia ou da etnofarmacologia. Ficarei apenas com os resultados
do uso milenar da ayahuasca pelos povos indígenas. A milenar história
amazônica não registra casos de morte ou de seqüelas à saúde dos povos
indígena por terem utilizado a ayahuasca. Nenhum índio deu entrada
no hospital dos brancos ou foi curado pelos pajés. Aliás, as mulheres indígenas,
'apesar' de beberem a ayahuasca, não registram nenhum caso de câncer
de mama. A ayahuasca não é "taliban", seus usuários não se constituem em
nenhuma seita, eles não são fanáticos, não há um único caso de morte
ou de castigo físico que tenha sido resultado do seu consumo ritualístico.
O uso ritualístico da ayahuasca não provoca transes místicos ou de
possessão. Ela não age no organismo como a antiga bebida hindu,
denominada soma, que se divinizou por afastar o sofrimento,
embriagando e elevando as forças vitais. Depois de 4.000 anos de uso sagrado
e ritualístico da ayahuasca os estudiosos da civilização ocidental erguem
argumentos anêmicos e endêmicos de uma sociedade que tem medo do
contato' aberto do homem com a natureza. É que eles têm medo da relação
amorosa entre o indivíduo e a natureza com os seus elementos poderosos
e coletivos. Os sábios e avançados incas utilizaram a ayahuasca para consolidar-se
como povo, como nação e para ajudar no florescimento da cultura, da matemática,
da agricultura e da astronomia. Não é qualquer planta ou cipó que faz um povo,
uma história milenar, uma religião. Só não puderam utilizar a sagrada
ayahuasca para produzir metálicos fuzis, pois se assim fosse, não teriam sido
dizimados pelos invasores espanhóis. Pizarro não consumiu o "cipó dos mortos",
por isso dizimou tantos guerreiros, mulheres índias, donzelas, pajés, curumins.
A ayahuasca resistiu, venceu os invasores e as suas crenças unilaterais,
atravessou os séculos, os milênios, unificou as milenares gerações indígenas
e suavizou a dor 'civilizatória' das eras pós-colombianas.
Quando o Acre propôs, sob a iniciativa da deputada Perpétua Almeida,
que o uso ritualístico da ayahuasca fosse considerado patrimônio
cultural imaterial é porque ninguém mata uma alma, ninguém prende um
sentimento, ninguém aniquila uma vontade, ninguém encarcera uma
opinião, ninguém enclausura uma fé. A ayahuasca é diferente de outras religiões,
que nascem de visões, contatos divinos, que têm origem na cosmologia do céu
para a terra. A Ayahuasca é a religião da terra para o céu, da matéria eterna e
natural para o infinito do sonho humano, a religião natural.Uma verdadeira
e única religião do Brasil, aliás, uma colossal e genuína religião amazônica!
Combatê-la é bizarra síndrome de colonizador!

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